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Texto que acompanhou a realização de exercícios com o público adolescente de diversas oficinas realizadas no Sesc Vila Mariana, entre 1998 e 1999. |
Questões para a análise da obra de arte visual
Ronaldo Entler, 1998
Quando se quer entender uma pintura, o ponto de partida é, obviamente, olhar para ela o tempo necessário para ver detalhadamente o que ela mostra e como seus elementos estão organizados. Esse é o começo, mas não é tudo. É preciso confrontar o que foi visto com um conjunto de referências sobre o artista, sobre seu momento histórico, sobre a arte de seu tempo, sobre a tradição construída em seu passado, uma tradição que o artista pode incorporar ou negar.
Mais do que dizer “o que deve ser visto em cada obra de arte”, o objetivo deste curso é oferecer tais referências, que serão confrontadas com cada imagem, formando pistas para nosso pensamento.
Por um lado, se apenas olharmos a pintura, captaremos aquilo que está em sua superfície, mas compreenderemos muito pouco os conceitos que pairam em torno dela. Simplesmente olhar é insuficiente, porque o que devemos buscar não é apenas uma forma, mas também um significado.
Por outro, se apenas tivermos as informações, perderemos de vista a concretude da arte, e sua diversidade, aquilo que diferencia uma obra da outra, mesmo que pertençam a um mesmo movimento ou a um mesmo artista. Se reduzirmos a arte a um esquema de “palavras” associadas a “movimentos”, correremos o risco de tomar a história da arte como uma espécie de receita culinária.
Portanto, o “olhar” e a “história” são duas fontes de informações que devem ser tomadas simultaneamente.
Mas o que fazer quando não temos todas as referências necessárias sobre cada obra, artista ou estilo? A resposta mais simples seria: temos que tentar ampliar nosso universo de informações, continuamente. Mas temos limites, e essa tarefa deverá ser realizada ao longo do curso.
O que devemos fazer, então, é potencializar as referências que temos, independentemente de serem muitas ou poucas. O importante é não recusar olhar uma obra, com o pretexto de que não se tem dados suficientes. A experiência (os livros, as conversas sobre arte e, principalmente, as exposições) nos ensina a lidar com o que temos e, pouco a pouco, isso vai enriquecendo naturalmente nosso repertório de informações.
Enquanto não temos essa experiência, podemos tentar encontrar pistas, fazendo a nós mesmos algumas perguntas sobre o que estamos vendo. Vale lembrar que, na maioria das exposições, um conjunto mínimo de informações acompanha a obra, e referências como o nome do autor, a data, a técnica e o título, já são pistas importantes. Mas, como exercício, podemos tomar a própria imagem como ponto de partida, e arrancar de nossos conhecimentos informações que temos, e que muitas vezes não sabemos que são úteis, porque não estão organizadas para essa finalidade.
Veremos a seguir alguns exemplos de perguntas que podemos fazer a nós mesmos – não necessariamente nessa ordem, e não necessariamente apenas estas -, para guiar o nosso olhar sobre uma imagem:
Identificação dos elementos técnicos da produção
- Qual a técnica utilizada? Pintura, gravura, fotografia, colagem? E também: o artista usa pincel, espátula, as mãos; trabalha sobre papel, madeira, tecido...?
- Como o artista opera essa técnica, isto é, como ele trabalha com sua matéria prima e com suas ferramentas? No caso de uma pintura, vejo camadas espessas de pigmento, que cobrem completamente o que existia embaixo; ou há transparência, um pigmento mais diluído, que me permite observar uma fusão de camadas. Há adição ou subtração de pigmento? No caso de uma gravura, é possível distinguir quantas matrizes foram utilizadas? E que tipo de matriz (madeira, metal, pedra)?
- É possível perceber o gesto do artista? Como são suas pinceladas? Vendo a pintura, podemos imaginar a intensidade com que tocava o pincel ou outro instrumento na tela, a velocidade e a extensão do movimento de sua mão etc. O gesto é também perceptível no caso de algumas esculturas.
Identificação dos elementos representativos ou simbólicos da imagem
- Há objetos ou seres que podem ser identificados na pintura? Ela nos remete a algo que conhecemos de uma experiência anterior, seja ela real ou fictícia (coisas, pessoas, animais, personagens etc.); ou remete a elementos da própria imagem (formas, linhas, cores, tons, contrastes, texturas etc.)? Isso significa identificar se a obra é figurativa ou abstrata.
- Se a imagem for figurativa, há um tema principal que pode ser identificado? O que está sendo representado, essencialmente: uma paisagem, um rosto, uma ação, uma passagem da história ou da literatura, objetos (e que tipo de objeto)? Isso nos ajuda a definir o que chamamos de gênero da pintura.
- Como o pintor representa a figura: os objetos são mostrados aparentemente do jeito que seus olhos vêem ou de um modo que parece distorcido? Se existe distorção, o que a rege: uma regra de representação (certas coisas são ensinadas, como uma convenção, e por isso devem aparecer na imagem); uma tentativa de representar uma “verdade” que não é visível aos olhos (um status social, um sentimento, uma ordem oculta, um pensamento místico); um problema de composição da obra; uma nova proposta sobre a forma como realmente o olho “enxerga”? Vale lembrar que “representar pelo olho” não é uma forma mais neutra do que “representar pela regra”. Por exemplo: se um personagem sagrado está no chão em vez de estar no céu, se está despido de pompas e de sua aura, porque – supõe-se – é assim que ele seria visto pelo olho, pense, em contrapartida, se já não existe um profundo significado ideológico na opção de ver tal personagem sagrado pelo “olho” e não por uma noção de “alma”.
- Alguns detalhes, cores ou objetos estão em cena porque são necessários a um efeito realista ou então porque o artista fez questão de inseri-los? Árvores têm folhas verdes e, portanto, não precisamos nos perguntar que significado particular têm as folhas ou sua cor, elas simplesmente podem ajudar a “figurar” a árvore. Mas certos detalhes são inseridos com um propósito especial: “invocar um significado simbólico”. Em geral, para decodificar uma simbologia é preciso conhecer a história, e esse pode ser uma limitação para o olhar “iniciante”. Mas lembremos que, antes de estudar a história, nós fazemos parte dela. Sabemos, por exemplo, o que pode significar uma Cruz, ou uma Estrela de Davi. Sabemos diferenciar a roupa e os objetos que identificam um camponês, um rei ou um bispo. Sabemos reconhecer, pelo contexto da própria imagem, se um nu significa pureza (a forma pura como viemos ao mundo) ou erotismo (o despir-se). Boa parte da arte que estudamos, pertence à nossa própria história, à nossa própria tradição. Por isso, com um pouco de imaginação, podemos interpretar muitos símbolos da arte ocidental, que é a nossa arte.
Identificação dos elementos formais
- Toda pintura, figurativa ou abstrata, é obviamente construída com formas visíveis. Como essas formas são construídas, como meu olho consegue separar uma forma da outra? Porque há um traço, um desenho; porque há diferença de cor; ou porque há passagem de um tom a outro, dentro de uma mesma cor?
- Como são as cores? Elas correspondem às cores que eu vejo em cada coisa da natureza? As cores são quentes ou frias; brilhantes ou opacas; muitas ou poucas; puras ou compostas? E como as várias cores e tons são formados: o pigmento se mistura na paleta do artista, na tela (através de camadas que se sobrepõem ou que se “borram” mutuamente), ou se fundem no nosso olho?
- Como os elementos da imagem se organizam no espaço? Há linhas e formas ocultas ou explícitas na composição? De que tipo: retas ou sinuosas? Há uma imagem limpa, geometricamente composta; ou há uma disposição complexa dos elementos?
- Como o ambiente ou os objetos parecem iluminados? Há um foco de luz bem dirigido, ou a luz é uniformemente distribuída? Há muita ou pouca luz? Qual o papel da luz na imagem: ajudar a identificar o ambiente (uma sala, uma caverna, ar livre); dirigir nossa atenção para um detalhe; dar relevo às figuras? Há sombras? De modo semelhante, que função elas têm? Representar o mundo da forma que vemos, com luz e sombra; esconder o traço de um desenho; dar um aspecto sombrio à imagem?
Estas perguntas não constituem uma receita para interpretar a obra de arte. Em alguns casos, muitas delas não farão sentido algum. Em outros, uma série de outras perguntas que não estão aqui formuladas seriam importantes. O objetivo dessas questões é, sobretudo, demonstrar a quantidade de informações que podem ser extraídas quando olhamos uma pintura, e como elas podem formar um corpo de referências para pensarmos a obra.
Não nos esqueçamos que algumas outras informações são oferecidas fora da obra. É de praxe que esteja identificado, ao lado da pintura, o autor, a data, a técnica utilizada e, se for uma reprodução em catálogo ou livro, o tamanho. Atualmente, quase todas as exposições dispõe de textos, catálogos, monitores, gravações explicativas etc. E ainda podemos prestar atenção no formato da tela, no tipo de moldura (e se existe moldura), na forma como a obra está exposta, nas obras que foram colocadas ao seu lado, e tantas outras coisas que nos parecem secundárias. Tudo isso pode ser muito útil. Resta olhar e pensar
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