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Um lugar chamado fotografia, Ronaldo Entler, 2009
É difícil explicar o que é a fotografia contemporânea. Alguma coisa parece ter se transformado e se consolidado nos últimos vinte ou trinta anos, mas o adjetivo “contemporâneo” não poderia ser mais problemático. Primeiro, aponta para uma fotografia que se define pelo diálogo com a arte contemporânea, tautologia que explica quase nada. Segundo, tenta dar conta de um processo que está em construção e que, no entanto, já possui uma história. Terceiro, torna absoluto um conceito que deveria se referir ao presente de qualquer momento: tudo é contemporâneo em seu devido tempo, mas às vezes parece que, daqui a cem anos, leremos nos livros que a “fotografia contemporânea” foi um movimento ocorrido na passagem do século XX para o XXI. Por fim, diz respeito a uma situação tão maleável que, com freqüência, incorpora aspectos da tradição aos quais parecia se opor. Como poderíamos olhar para a produção recente e dizer que tal coisa é contemporânea ou não é? Com contornos escorregadios, resta apreender que, mais do que um procedimento, uma técnica, um tendência estilística, a fotografia contemporânea é uma postura. Algo que se desdobra em ações diversificadas, mas cujo ponto de partida é a tentativa de se colocar de modo mais consciente e crítico diante do próprio meio. Alguns recortes são esclarecedores. Podemos reconhecer nas propostas que assumem uma direção ficcionalizante, algo bem representado nesta exposição, uma experiência fundamental para a afirmação dessa postura. Sem pretender encontrar as determinações que conduzem a fotografia até aqui, vale a pena olhar retrospectivamente para situar algumas questões perante as quais tais experiências recentes demarcam uma posição. Conhecemos bem as dificuldades enfrentadas pela fotografia no ambiente das artes tradicionais do século XIX. Curioso é que o modo como a fotografia se defendeu deixou heranças tão problemáticas quanto os argumentos de seus detratores. A ansiedade de ser reconhecida como arte gerou duas reações opostas: ora a fotografia tentou absorver forçosamente efeitos superficiais da pintura, ora ela buscou se fechar nos limites de sua técnica para não se confundir com outras formas de expressão, sobretudo aquelas que lhe eram hostis. Ambas as atitudes apenas contribuíram para seu isolamento, seja porque encontraram na submissão a única forma de diálogo com as artes tradicionais, seja porque buscaram um estatuto estético que lhe fosse exclusivo. Felizmente, esse foi um problema de ordem mais retórica do que prática, e tanto os pictorialistas quanto os mais puristas deixaram boas contribuições para a posteridade. De todo modo, esse é um debate que parece ter sido sepultado pela produção recente. Reconhecemos na experiência moderna uma vocação para expandir as fronteiras das linguagens artísticas ao mesmo tempo em que refletia sobre suas especificidades, ainda que seja forçoso dizer que artistas como Rodchenko, Moholy-Nagy ou Geraldo de Barros estiveram de fato preocupados com as fronteiras entre as linguagens. Em todo caso, a questão que se esboçava parecia ser mais ou menos da seguinte ordem: até onde podemos ir na experiência com fotografia (ou com a pintura, a música etc.)? Isso ainda pressupunha um território demarcado. Uma mudança começa a se operar muito espontaneamente na efervescência dos anos 60: muitos artistas deixaram de se perguntar que tipo de arte estavam fazendo e, assim, transitaram indistintamente entre diversas linguagens, incorporaram técnicas ainda mais alheias à tradição artística, como a serigrafia, o xerox ou meios eletrônicos insipientes, e realizaram experiências hibridas que hoje chamamos de performances, instalações, ações, proposições, e outras tantas coisas difíceis de nomear. É interessante também pensar que a fotografia penetrou efetivamente os espaços da arte de um modo tanto mais evidente quanto menos esteve preocupada em responder aos fantasmas históricos que interrogavam sobre sua legitimidade artística. Esse momento se encarregou de exorcizar tais fantasmas de uma forma radical: a questão de saber se a fotografia é ou não uma obra de arte se esvazia quando ninguém está preocupado em definir se uma obra é ou não fotográfica, ou pictórica, ou videográfica etc. A fotografia atravessou as experiências dos artistas dessa geração de várias formas. Em alguns casos, ela cumpriu apenas o papel de registrar obras que eram efêmeras ou inacessíveis, como é o caso das performances ou da land art. Parece pouco, mas já se esboça aqui uma questão que será largamente explorada nas décadas seguintes: a fotografia é um modo de existir das coisas, com grande capacidade de trânsito e em profundo diálogo com olhar do público que, por sua vez, aprendeu a relacionar-se com o mundo através de sua mediação. A idéia de que certas realidades se constroem juntamente com suas formas de representação é um problema chave da fotografia contemporânea, como vemos nos trabalhos aqui expostos. Num contexto paralelo, a questão da especificidade das linguagens ainda se colocava: entre os anos 60 e 80, vários teóricos de peso lançaram mão do repertório da semiologia e da semiótica para pensar a fotografia numa perspectiva ontológica, isto é, para buscar aquilo que lhe é específico, que lhe é exclusivo, que a diferencia da pintura, do cinema, do vídeo. Teorias muito consistentes nos ofereceram, no entanto, respostas antagônicas, e nos colocaram num beco sem saída que se revelou bastante produtivo: demarcar a especificidade da fotografia exigia tantas ponderações que, mais cedo ou mais tarde, éramos obrigados a reconhecer a complexidade e a porosidade desse signo. Esse debate ocorreu num âmbito internacional e teve o mérito de expor os códigos – peculiares ou não – que fazem de toda imagem um artefato da cultura. No Brasil, esse debate esteve apoiado numa diversidade de autores de peso, alguns oriundos ou atuantes na França, como André Bazin, Roland Barthes, Philippe Dubois e Jean-Marie Schaeffer, outros, no Brasil, como Vilém Flusser, Boris Kossoy e Arlindo Machado. O foco das discussões foi gradualmente se deslocando das especificidades da fotografia para as possibilidades de trânsito e reconfiguração de seu estatuto. Isso foi sentido de diferentes formas. Em 1994, e com uma década de atraso, Philippe Dubois veio ao Brasil para o lançamento de O ato fotográfico , já bastante presente nas bibliografias de nossas pesquisas. Trata-se de uma obra que tenta organizar as várias direções assumidas pelo pensamento sobre a fotografia, mas que não deixa de se posicionar quanto a uma suposta essência desse signo. Ao mesmo tempo em que nos apresentava a edição brasileira do livro, Dubois assumia o esgotamento das pesquisas ontológicas, e se demonstrava mais interessado nas interseções que a fotografia poderia construir com outras linguagens. Essa guinada foi percebida tanto em suas entrevistas quanto em alguns dos outros ensaios incorporados ao livro. Também é sintomático o modo como Vilém Flusser pôde ser reinterpretado. Os primeiros leitores de sua Filosofia da Caixa-Preta, lançada no Brasil em 1985, sentiram-se bastante desconfortáveis diante da idéia de que a fotografia é “um programa que vai se esgotando” e o fotógrafo, um “funcionário” do aparelho. Uma década depois, com ajuda das transgressões realizadas pelos artistas, entendemos mais claramente a provocação que Flusser nos lançava, no sentido de nos libertar dos gestos previsíveis que pareciam definir o bom uso da imagem técnica. Falamos aqui de fenômenos bastante desconexos, mas que, também num âmbito internacional, ajudaram a instaurar motivações que muitos artistas souberam aproveitar: a liberdade no uso das linguagens e o subseqüente esgotamento das pesquisas ontológicas, a consolidação de um olhar mais crítico sobre os discursos históricos da fotografia, o sepultamento do problema de ser ou não uma arte legítima, o reconhecimento dos códigos culturais que forjam os usos e a credibilidade da imagem técnica e, claro, a percepção de um novo momento de revolução tecnológica. É no entrecruzamento desses fenômenos que nascem os trabalhos que vemos nesta exposição. Permanece difícil encontrar uma palavra capaz de agrupar tais experiências, algo que nos explique efetivamente aquilo que se chamou de fotografia contemporânea. Esboçaram-se algumas tentativas, sempre insuficientes e provisórias: falou-se numa fotografia construída, híbrida, contaminada... Mas, enquanto levava ao limite as possibilidades de transgressão técnica e ficionalização, essa mesma fotografia nos ajudou a perceber o quanto havia de impuro e de imaginário na própria experiência documental a que se opunha. A fotografia assumidamente híbrida e encenada que vemos aqui constituiu uma espécie de linha de frente desse processo de abertura e conscientização, porque motivou ou produziu reflexões que nos ajudaram tanto a enfrentar os preconceitos históricos quanto a reconhecer nas imagens que produzíamos cotidianamente um universo de sentidos menos óbvios. Mas ela não constitui uma fórmula. Desde então, quando a fotografia conquistou um lugar definitivo (para alguns, exagerado) nas coleções, galerias e bienais de arte contemporânea, vemos de fato a convivência de imagens que vão da desmaterialização radical (experiências com o fotográfico, não propriamente obras fotográficas) até uma nova aproximação com a tradição documental. Mas, como já sugerimos, por trás dessa diversidade, há em comum uma postura, um pensamento, um discurso: uma atitude menos mistificadora diante da técnica, a consciência sobre os artifícios que afirmam a fotografia como instrumento da ciência e da memória, uma posição crítica com relação à sua história, e o reconhecimento das virtualidades – os diferentes tempos – que coabitam uma imagem que, até então, parecia se esgotar num dado instante do passado. A desconstrução dos rituais apoiados nas imagens técnicas, a profunda transformação tecnológica da fotografia e sua intensa penetração numa experiência artística que se assume híbrida, conceitual e, às vezes, um tanto desmaterializada não deixou de estabelecer uma situação de crise: será que ainda há sentido em falar de fotografia? De fato, discutiu-se ora com pesar, ora com empolgação a “morte da fotografia” ou o surgimento de uma “pós-fotografia”, sua transmutação em processos que atravessam os limites mínimos que até então a definiam. Quando nos deparamos com a liberdade de procedimentos que vemos nesta exposição, o que, afinal, estamos chamando de fotografia? Porque ainda recorrer a essa palavra? Está claro que não nos é mais conveniente definir uma obra a partir do uso tradicional de certo aparato, em outras palavras, pensar a fotografia apenas a partir do uso da câmera, do suporte sensível à luz, dos álbuns ou das imagens emolduradas. No entanto, vale evitar cair num relativismo que inviabiliza a possibilidade de uma reflexão mais assertiva sobre a produção recente. Tanto faz se as imagens presentes nesta exposição poderiam ser tratadas também como pintura, design, instalação, performance, ou se poderiam ser bem acolhidas em outras maisons que não a da fotografia. Não precisamos ser conservadores – sair em defesa do documento, da película, do laboratório, do enquadramento, da contemplação, do instante decisivo – para reconhecer que há sim uma história que confere, ainda hoje, um lugar à fotografia. Isso não é pouca coisa. Se não sabemos definir seus limites, a fotografia é, pelo menos, um lugar conceitual construído e consolidado no tempo, a partir de onde olhamos para uma produção artística, mais confortavelmente no caso de algumas obras, menos confortavelmente, no caso de outras. Seria legítimo, por exemplo, pensar Joel Peter Witkin a partir das referências da cenografia, Orlan, a partir da performance, Duane Michals, a partir do cinema, Vik Muniz, a partir do desenho, Georges Rousse, a partir da arquitetura; e ainda poderíamos recombinar ao infinito os autores e as linguagens aqui presentes... Mas escolhemos olhar para essas imagens a partir da fotografia, conceito que ainda ilumina tais experiências de modo muito produtivo. É possível romper com o purismo ontológico, é possível olhar criticamente para o passado, sem ter que negar o papel que certas referências exercem na produção e na fruição das imagens. Pensar a fotografia como um lugar conceitual nos permitiria retornar à própria história de modo transgressor. Poderíamos, por exemplo, ver o quanto outras manifestações artísticas podem ser pensadas a partir da fotografia. Quanto ao cinema, a relação é óbvia e ainda técnica. Sendo mais radical, é possível perceber, por exemplo, o quanto a pintura de Degas tem de fotográfica, quando recorre a instantes aleatórios e enquadramentos com cortes abruptos, coisas que entraram em jogo a partir da experiência com a fotografia. O mesmo para a poesia de Baudelaire (justo ele, que nos pareceu tão resistente), quando detém e prolonga seu olhar sobre a singularidade de um evento diluído no fluxo vertiginoso da metrópole. Enfim, uma exposição de fotografia, uma “casa da fotografia” é, acima de tudo, um convite a pensar uma produção a partir de um referencial que permanece legítimo, mesmo quando se assume suas possibilidades de transgressão. Por fim, podemos aprender algumas coisas com outras artes de maior tradição ficcional que a fotografia, como a pintura, o teatro ou o cinema. Reivindicamos a consciência de que toda operação técnica reconstrói a realidade, e as imagens aqui presentes demonstram bem essa atitude. Mas, ao desmistificar a relação da fotografia com o real, somos às vezes empurrados para uma posição radical que nos obriga a tomar todas as imagens como uma experiência auto-referente, como se, no final das contas, a fotografia só fosse capaz de falar da própria fotografia, como se não existisse um mundo fora dela. Temos hoje maturidade para restabelecer algumas conexões. Mesmo que nenhum de nós tenha se postado diante das câmeras desses artistas, quem irá negar que as fantasias, os sonhos, os medos aqui representados não pertencem também às nossas vidas? Como não reconhecer que as representações inventadas pela arte estão em diálogo com os papéis que vivemos nesse jogo chamado cultura? Ou como não admitir que a ficção oferece experiências efetivamente transformadoras da realidade, às vezes, tanto ou mais revolucionárias que o documentário dito engajado? Uma vez que, através do estranhamento, essas obras já nos ajudaram a reconhecer as possibilidades de manipulação da fotografia, estamos agora em condições de recuperar as possibilidades de identificação com o olhar. Teremos então a surpresa de perceber que, ao inventar um mundo, essas ficções nos representam ainda mais profundamente.
BIBLIOGRAFIA: Barthes, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Batchen, Geoffrey. “Post-Photogaphy” in Each Wild Idea: Writing, Photography, History. Cambridge: The MIT Press, 2002. Bazin, André. “Ontologia da imagem fotográfica” in XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983. Bordas, Marie-Ange; Entler, Ronaldo. “Da gênese ao efeito” (entrevista com Philippe Dubois) in Revista Facom n. 3, São Paulo, Faap, 1º semestre de 1996. Chiarelli, Tadeu. "A fotografia contaminada” in Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999. Dubois, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas (SP): Papirus, 1994. Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Fontcuberta, Joan. El beso de Judas. Fotografía y verdad. Barcelona: Gustavo Gili, 1997. Kossoy, Boris. Machado, Arlindo. Michaud, Yves. La crise de l’art contemporain. Paris: PUF, 1997. Schaeffer, Jean-Marie. A imagem precária. Campinas (SP): Papirus, 1996. Baqué, Dominique.
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